terça-feira, 15 de janeiro de 2008

A Estrada

E encontrei alguém. Ou algo. Andando. Caminhando sem parar. Uma “coisa” caminhando pela estrada. Há quem diga que era um menino. Há quem diga que era um homem. Há quem a ache engraçada, seja a coisa um menino ou um homem. E realmente tinha uma certa graça. Mas era menor que um homem. E tinha olhos daqueles que já viram bem mais que uma criança. Olhos que mal era possível se ver a cor, pois quando aqueles olhos inquietos finalmente se acalmavam e paravam de olhar para os lados com ansiedade, aí era a luz do sol que impedia de se ver a cor dos seus olhos. E já já explico o que ela estava vendo quando olhava para os lados. Antes, porém, vou descrever fisicamente o que vejo.

Quando o sol atingia diretamente o rosto da "coisa", os olhos pareciam cor de mel. Mas quando uma árvore à beira da estrada tapava a luz do sol, os mesmos olhos pareciam da cor de montanhas tropicais há quilômetros de distância. Mas, de certa forma, o que menos chamava atenção naquela "coisa" eram seus olhos. Bom, era um ser humano pelo menos. Porque se olhássemos para baixo, veríamos que tinha duas pernas, com um pé cada, e era com eles que caminhava imparcialmente pela estrada, com passos neutros, calmos e um pouco inseguros, como quando andamos por um assoalho liso e molhado com os nossos tênis mais velhos.

Vestia calças que algum dia devem ter sido novas, mas não agora. As pernas das calças eram compridas demais e se arrastavam pelo chão, e a “coisa” sabia bem disso, porque a cada 5 metros (ou aproximadamente isso) puxava e as tirava debaixo dos pés, mas não adiantava muito pois dois passos adiante e as pernas das calças estavam novamente se arrastando. Era uma calça jeans, de um tom marrom azulado, rasgada um pouco nos joelhos. Não era nem um pouco bonita, não mesmo, mas um dia essa “coisa” já achou que fosse, e talvez fosse mesmo. Porém, agora a “coisa” parecia até concordar com a feiúra dela. E de fato essas calças não aparentavam ser muito confortáveis, não sei por quê.

Acima delas, estava a camiseta que ela vestia. Era branca, toda branca, só branca, e estava grudada no corpo. Poderia ser o suor, mas acho que realmente a camiseta era pequena para ela, justamente o contrário das calças. E não pense que ela estava descalça. Não, calçava tênis. Pretos, não muito antigos, mas muito velhos. E a areia da estrada na qual ela caminhava apenas contribuía para isso. Era uma areia fina, laranja, com algumas pedras espalhadas aqui e ali. Num dia de chuva em minutos já se transformaria num rio de lama. Mas não agora. Fazia sol, bastante sol. Era fim de primavera e por onde essa “coisa” andava no momento o fim da primavera era quente como o ápice do verão. E eu sinto que esse sorriso no rosto da “coisa” seja em parte conseqüência desse calor, mas não só isso. O que mais aconteceria de bom para ela no fim da primavera se não a chegada do calor? Não sei mesmo. Mas que ela gostava do calor, ah, isso tava na cara.

É, de fato era um ser humano. Tinha boca de ser humano, dentes de ser humano, lábios de ser humano. Então vou parar de chamar essa “coisa” de “coisa”. Que bom. Porque não me sinto mesmo muito à vontade chamando qualquer coisa de “coisa”. Esse ser humano tinha cabelos castanhos, um pouco escuros. Mas não dava a impressão de serem daquela cor mesmo. A impressão que dava é que eram mais claros e estavam assim porque estavam molhados. E a pele dele era branca, mas não por muito tempo. Certamente aquele sol daria um jeito nisso logo logo. Ah, a boca sorria, sim. Infelizmente, um sorriso não muito admirável. Era um sorriso de quem passou anos muito tristes e agora parecia que estava encontrando a felicidade. Ou talvez o sorriso de quem passou anos muito felizes e agora não queria aceitar que a felicidade estava indo embora. Se você perguntasse para esse “sujeito” em qual situação ele se encaixava, ele diria “talvez, a segunda”, aposto!

E de fato diria isso com medo. Porque admitir que estivesse triste o assustava demais. Percebo isso só olhando para ele. Aliás, não falei, mas eu consigo ver uma pessoa por dentro tão facilmente quanto você consegue ver por fora. Acontece que ele sabia muito bem que se dissesse a alguém que estava triste seria o mesmo que pedir para a pessoa perguntar a razão da sua tristeza. E ele não queria que jamais perguntassem isso. Para começar, nem ele mesmo sabia. E iria ficar mais triste ainda só tentando achar a razão da própria tristeza. A verdade é que nem mesmo o “sujeito” sabia o porquê dos seus próprios sorrisos. Aliás, vendo agora esse sorriso, percebo que possui um rosto liso, sem barba nem bigode. É, não deve passar de um menino, um menino estranho.

Ou então uma menina. Ou então uma mulher. Não sou bom em ver as pessoas por fora, sinto muito. Mas as calças e os tênis diziam que era realmente apenas um menino. E eu não vou pensar em outras possibilidades mais bizarras, e você não tem o que fazer a não ser aceitar essa minha posição: era um menino. Aceite, ou pare de ler agora mesmo. Porque se estou escrevendo isso então é porque eu sou o contador da história. E eu decido que era um menino, e caso encerrado. Simples assim. E além do mais, o rosto era feio demais para ser uma menina. Não que fosse realmente feio, mas a verdade é que eu acho que aquele sorriso o deixava mais feio do que se estivesse sério.

E assim essa espécie de menino caminhava, incansável, e me parece que para ele aquela caminhada não era esforço nenhum. Tenho certeza de que ele já passou por caminhadas mais difíceis. Quem, como eu, já caminhou pelo deserto, com os pés se enterrando na areia fina, o sol queimando lá no fundo do coração e os reservatórios de água mais secos que sua própria boca, sabe do que estou falando. E aquele menino parecia saber disso. A estrada em que ele caminhava era rodeada por um bosque, com árvores tão próximas que não se podia ver o céu quando se estava debaixo delas. Só ali, no curso da estrada, é que o céu era visível. E mal havia nuvens nele.

E esse céu azul contrastava de forma espetacular com as árvores bem verdes do bosque. No chão do bosque, entre folhas mortas e relva novinha, havia pequenos lagos, de dois a três metros de largura, como se fossem poças bem grandes. E certamente existia uma infinidade deles, mas só se podiam ver poucos, pois as árvores juntas umas das outras deixavam que apenas alguns metros do bosque dessem para ser vistos da estrada. A água nesses lagos parecia imóvel, como se estivesse sólida. E me parece que se tratava exatamente disso, porque em cima de cada lago desses, como se estivessem andando sobre a água sem se molhar, havia pessoas. Num, eram senhoras sentadas em cadeiras de praia, um pouco gordas e porcas, tendo crises de risos. Em outro, pilhas e pilhas de livros, grossos e antigos. Em outro, havia garotos brincando. Em mais um outro, havia lindas moças nuas dançando valsas com parceiros invisíveis. E em mais um outro, era simplesmente um garotinho sorrindo (esse sim, uma criancinha de verdade, e com toda a felicidade do mundo)... Sorrindo para ele, para o meu menino que caminha pela estrada. Aliás, vendo aquele garotinho, passo a achar que talvez meu menino não seja assim tão novinho. Enfim, em cada pequeno lago havia uma cena a ser vista, ouvida, apreciada, talvez até cheirada.

Eu, olhando em frente, consigo ver muitas coisas. Os lagos e a estrada continuam, mas não sei onde terminam porque mais à frente a estrada faz curvas e as árvores altas e em grande quantidade impedem que se veja qualquer coisa após a primeira curva. Aliás, de fato não é uma estrada que segue sempre reto, mas as retas são longas e às vezes demoram-se dias caminhando até se encontrar a próxima curva. Nesse momento, porém, vejo uma curva há menos de um quilômetro. O que será que aguarda o meu menino após aquela curva? Nem eu mesmo sei. Pelo menos em parte. Ele gostaria de saber, mas é bem verdade que já se acostumou a não saber.

Digo isso porque eu olho à frente e vejo a continuação da estrada, com curvas de vez em quando e tudo mais, mas ele não. A visão dele é difícil de descrever. Ele não vê nada que esteja há mais de dois metros da ponta do seu nariz. Além desse ponto, tanto bosque quanto estrada não existem. À frente, apenas branco, ou preto, se for noite. Um branco terrível, e um preto mais terrível ainda. E a cada passo que ele dá, pedras, areia, folhas, água, árvores inteiras, tudo vem flutuando do nada e aterrissando com classe no caminho, criando o bosque à frente, criando a estrada que ele pisará um segundo depois. Era assim que ele via as coisas. E era ansioso, caramba, e como! Qualquer coisa que ele via surgir, ficava olhando com olhos arregalados. E ele conhecia tudo o que via. Eu não, não conheço nada do que aparece no bosque, mas ele sim.

Ele não só reconhece tudo, como às vezes também interage com as coisas. Quando às vezes encontra o tal garotinho sorridente em algum lago do bosque (aliás, acompanhando esse meu menino caminhar já notei que com freqüência aquele garotinho aparece), o sorriso dele aumenta. Quando encontra os garotos brincando, o sorriso dele some de vez, dando lugar a uma cara de nostalgia que chega a dar pena. Ele sente uma saudade avassaladora sempre que vê uma cena como aquela, com garotos brincando. Garotos sujos e provavelmente fedidos também, vestidos quase como mendigos. Mas quanto mais indigentes os garotos pareciam, mais ele queria voltar a estar lá. Sim, voltar, porque um dia ele já esteve lá, brincando. Talvez não com aqueles garotos. Eu pelo menos espero que não, porque o meu menino é cheiroso. Sim, apesar de vestir roupas fora do tamanho certo e não muito novas, ele cheira bem.

E nessas horas, quando ele parece estar a ponto de cair em lágrimas (mas nunca chegam a cair, nunca), quando o nó na garganta fica bem apertado, quando o nó chamado saudade fica apertado pra valer, é que apenas uma cena deslumbrante como a das senhoritas dançando nuas consegue acordar ele para a realidade. É claro que inúmeras outras cenas acontecem em cima desses lagos, algumas que ele nem sequer sabe do que se trata porque estão atrás das árvores e ele mal enxerga, mas são essas que descrevi as que mais frequentemente percebo. E olhem só, enquanto eu falava isso tudo, já se passou tanto tempo que o menino enfim chegou na curva, e parou de andar. Ele encontrou algo no canto da estrada, algo que eu sei muito bem o que é, mas não podia dizer para você antes.

Trata-se de uma placa. Uma placa pequena, velha, de madeira, presa num pedaço de pau fincado no chão. Quando chega bem perto dela, o menino consegue ler o que está escrito. E suspira. Respira bem fundo. E volta a caminhar. Agora o sorriso sumiu de vez do seu rosto, dando lugar a uma expressão que eu não consigo descrever. Não o acompanho nessa caminhada há muito tempo. Na verdade, só há três horas, que foi quando comecei a escrever esse texto. Porém, noto também que não é a primeira vez que ele faz essa cara, essa cara de... Sei lá. Bom, quer saber o que dizia na placa? Não dizia muita coisa não. Apenas um número. Sim, um número. De quatro dígitos, aliás. A cor do escrito, não sei ao certo. Porque quando olho para a placa, vejo o número em cor preta, mas tenho certeza de que o meu menino viu de outra cor. Qual, só ele sabe.

Você é muito curioso? Ficar sabendo que ele viu uma placa e nela estava escrito um número de quatro dígitos não é suficiente? Você nem conhece ele, então não é da sua conta o que ele viu. E mesmo assim, para mim e para ele a placa fez todo sentido do mundo, mas para você certamente não faria sentido nenhum. Bom, vou terminando aqui. O menino continuará seguindo, não sei por quanto tempo. Mas eu não vou mais acompanhá-lo. Não é da minha conta também o que acontece com ele. E eu notei que ele já estava tendo a sensação de que alguém o espionava. Bom, só espero que ele seja feliz algum dia. Porque nadar, nadar, nadar e morrer na praia é algo que... Bom, sei lá. Eu só não desejo a ninguém.

Alex

2 comentários:

Ceci disse...

Muito boa sua história, muito interessante, fácil de ler, bem especifica, dá para imaginar tudinho...realmente espero com ansia ler seu primeiro livro, porque tenho certeza que um dia voce vai ter um!...e outro...e outro.

E...eu preciso saber o que diz aquela placa!!!...o número e o porque desse número!!!
Nao pode me deixar com essa coisa de nao saber!!!

Anônimo disse...

Faço coro com a Cecília. Quero saber mais da placa!

E se essa história for toda sua, já vou pedir que você passe a usar-se do meu fórum =P

Abraço!